quinta-feira, 15 de maio de 2008

Evocação

A Rua de Vila Meã, onde eu nasci em 1923, era uma rua pacata.
Começava na super arborizada Praça da Corujeira e terminava na passagem de nível.
Do outro lado da linha era a fábrica da resina, designada por Resineira. Foi a sirene desta fábrica, relógio dos seus trabalhadores, que comandou durante muitos anos a vida dos residentes das redondezas.
E foi a menos de cem metros da Resineira, na Rua do Godim, que a minha vida deu um tombo, quando encontrei, caído na calçada, um rolinho de papel de jornal contendo vinte moedas de prata de dez escudos. Mas, este acontecimento, faz parte de outra história.
Mesmo junto à linha dos comboios, à direita de quem segue para a Corujeira, era a Quinta do Mitra, hoje esventrada pelos acessos à VCI. Um pouco mais à frente, mas do lado esquerdo,os domínios dos Ferreira dos Santos.
O terreno da casa onde eu nasci, confinava a Sul com uns campos de semeadura dos ditos Ferreira dos Santos. Apenas um ribeirito, com águas vindas do Matadouro Municipal, separava os dois terrenos.

Um pouco mais à frente, mas do lado esquerdo, um pequeno aglomerado de muito humildes casitas. No galinheiro de uma delas, enforcou-se, sentado, o Hermínio.
Mais acima, era a nossa mercearia.
Como o seu dono era casado com uma filha dos donos da Quinta do Mitra, as pessoas chamavam-lhe a Loja do Mitra.
Dez metros acima, moravam os Guedes.
Era gente de posses, que não se mostrava muito aos mortais lá do sitio, mas eram muito educados. O chefe da casa, era Inspector dos Caminhos de Ferro e passava mais tempo na Bélgica do que em casa. Ele era o Delegado da CP, na aquisição de locomotivas.

Em frente dos Guedes, era a nossa casa.
Quando eu nasci, a nossa casa era, a Sul, encostada a outras casas e, por isso, recebia muito pouco sol, e como a minha irmã Francelina tinha problemas pulmonares, o seu médico, sempre que podia, pressionava o meu Pai para que construisse outra casa, ao lado, mais solarenga.
Isso, dizia o médico, pode ser a salvação da sua filha!...

O meu Pai era um génio... Assim; logo que as finanças domésticas o permitiram- estavamos em 1934 - deu-se início à construção. Foi uma tarefa gigantesca.
Naquele tempo, à mesa, eramos doze!...
Toda a gente, fosse homem ou mulher, trabalhou para a nova casa...
A casa ainda lá está. Mudou de donos, e o seu enorme terreno foi sugado para garagem dos transportes colectivos.

Ao lado da nossa casa, era a casa do irmão mais velho do meu Pai, o Tio da pêra.
Encostada a esta, a Norte, era a casa dos Carroças.
Este prédio era de lºandar, tal como o nosso e o dos Guedes.
Já perto da Praça da Corujeira, era o carvoeiro Rocha. Além de carvão- de choça e de pedra- também vendia petróleo e azeite.
Em frente à carvoaria, era a casa onde, nos anos sessenta, viveu o doutor Mauricio Esteves Pereira Pinto, que viria a emprestar o seu nome, à minha velhinha Rua de Vila Meã.

Em frente à loja dos Rochas, era a Escola Infantil.
Lembro com muita saudade, a Dona Mimi, a minha educadora. Foi nesta Escola que aprendi as primeiras letras e fiz a aprendizagem cantada da tabuada...
Estou a ver-me e a ouvir-me, com a chuva a tamborilar nas vidraças e a miudagem, cantando:Dois vezum...dois, dois vez dois...quatro, três vez três...nove...
Esta, "era" a rua onde eu nasci.

PS- A minha irmã Francelina, morreu de velhice.
Valeu-lhe a sabedoria do meu Pai e, quiçá, o sacrificio de todos os seus irmãos.























1 comentário:

Trol Leifsson disse...

Uma bela descrição da tua rua natal e da epopeia da casa familiar construída em conjunto. Muito bem, avô! Paulo