sábado, 14 de junho de 2008

A dança croata

É impensável aceitar qualquer deliberado propósito do professor para pôr à prova o que quer que fosse e, muito menos, os sentimentos dos seus pupilos, quando decidiu
que eles mudassem de par.A movimentada dança fazia parte de um número do folclore
croata em que as damas e os cavalheiros,em filas frontais, se tinham de colocar de braço dado, enquanto volteavam pelo palco.Inicialmente era escolhido um par mas,
quando o número fosse repetido,apenas por exigência coreográfica,a dama teria que
ser trocada.Tudo isto era inocente e tanto a dama como o cavalheiro eram livres de
escolher o par que quizessem.Feita a primeira repetição do ensaio,certa dama,antes
do sinal de arranque avançou e, de imediato,agarrou o braço do cavalheiro com quem
tinha já dançado.À parte pequenos aceitáveis desacertos,todos os pares se portaram
bem,porém, a professora, decidiu insistir, repetindo o ensaio.Toda a gente se posicionou nos seus devidos lugares.Contudo,antes do sinal de arranque, já a certa
dama estava novamente agarrada ao braço do seu anterior parceiro.
Certamente que ninguém deu importância ao sucedido,apenas o marido da dama,exclamou
aparentemente agastado: Não vale escolher sempre o mesmo parceiro!...

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Cabelos negros

Naquela fria e cinzenta tarde de Domingo quando ele chegou à fila para tomar o autocarro, já lá estavam umas quinze pessoas.
Na fila, à sua frente,postava-se uma agradável figura de mulher.
Cheirosa,mais ou menos da sua estatura...sapatos pretos de salto alto...e dona dos
mais belos cabelos negros que os seus olhos jamais viram.
Como seria o seu rosto?

Inclinou-se um pouco.O perfil era também agradável.
Aproximou-se um pouco mais e,perto da sua nuca murmurou...
É natural a cor dos seus maravilhosos cabelos?
Após uma breve pausa,para seu espanto, ela respondeu: Não...são pintados...
São uma maravilha; disse ele.
A dama excitou-se; voltou ligeiramente o rosto e, esboçando um adorável sorriso,
respondeu: Muito obrigada...

O autocarro, entretanto, chegara e as pessoas foram entrando até que chegou a vez da dama dos cabelos negros. Ele, que a seguia, sentou-se a seu lado.
Tendo por tema os negros cabelos,foi fácil o arranque do diálogo e, sem demora se
estabeleceu a "comunicação". E, quando pouco depois,ele,preparando-se para sair do autocarro lhe perguntou; não quer sair também; não admirou que ela,sem nada dizer,se
levantasse também para sair.

Sentaram-se na primeira pastelaria que encontraram.
Conversaram...conversaram...e então ele arriscou; permite-me que afague os seus cabelos? Ela sorriu, e com um ligeiro inclinar da cabeça "disse" que sim.
Estava derrubada a ultma barreira.

Horas depois,quando a matutina alva já despontava no horizonte,ela saiu.
Segundos depois,ele,pousando as chaves do aposento sobre o balcão da recepção saiu também.
Um táxi os aguardava.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

A hortinha

No decurso da minhas matutinas digressões,já tinha passado muitas vezes por aquele
quintalinho.Quando muito,a sua área andaria pelos cem metros quadrados.
Eu não percebo nada de agricultura, mas gosto de ver coisas bem feitas.
Aquela hortinha, tinha um pouco de quáse tudo; Couves galegas (as do caldo verde),
couves pencas, vagens ( que lá pela capital chamam de feijão verde),cebolas ,alhos...
Via-se que tudo tinha sido feito com muito agrado.
Naquele dia parei.
Parei, porque o autor de tão asseada horta, estava à vista.
Mas não estava a trabalhar na sua horta...encostado ao longo cabo da sua sachola estava a contemplá-la!...
Dei-lhe os parabéns e os seus "agradecimentos" duraram mais de uma hora a ser-me dados. O hortelão, tinha fome de falar da sua obra.
Comecei a trabalhar na terra, diz-me ele,quando tinha dez anos.Mas não eram terras
deste tamanho!...eram terras enormes, que levavam meses a amanhar...
Trabalhei muitos, muitos anos...sempre gostei do que faço...
Fez uma pausa e mudou de assunto.
Aqui há uns bons anos, eu sempre urinei muito bem,o meu rim direito começou a asnear.
Passei a ser tratado no Hospital de S.João. Os senhores doutores, de tanto andarem à
volta de mim,resolveram tirá-lo...eu ainda lhes perguntei;Estava ruim o meu rim senhor doutor? Ruim ?! respondeu ele,estava bom para dar ao gato!...E tenha cuidado,
porque o outro rim, o que ainda está bom, tem cinco anos para lhe provar que consegue
fazer sozinho o seu trabalho...Eu bem percebi o que eles queriam dizer com aquilo...
Agora, voltou a mudar de assunto,o que me anda a afligir é a coluna!...
Agarrado à cintura, enquanto fazia uma careta,acrescentou;A sachola já pesa muito...
em cima dos meus oitenta e três...
Eu,que tinha de completar o meu pedestre giro,fiz menção de me despedir mas, o hortelão não consentiu ao perguntar; e você,quantos anos tem?
Lá lhe disse a minha idade.
Torceu ligeiramente o pescoço, dizendo: Não está mal, não senhor...
Fez uma pausa, para depois dizer; Olhe senhor, eu não sei a sua graça, mas tenho que
lhe dizer uma coisa...nunca ninguém tinha gabado tanto a minha horta...muito obrigado.
O nó da sua garganta,moveu-se.
Para disfarçar,tossiu...
Depois,com um enorme lenço vermelho,sonoramente,fingiu que assoava o nariz...

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Evocação

A Rua de Vila Meã, onde eu nasci em 1923, era uma rua pacata.
Começava na super arborizada Praça da Corujeira e terminava na passagem de nível.
Do outro lado da linha era a fábrica da resina, designada por Resineira. Foi a sirene desta fábrica, relógio dos seus trabalhadores, que comandou durante muitos anos a vida dos residentes das redondezas.
E foi a menos de cem metros da Resineira, na Rua do Godim, que a minha vida deu um tombo, quando encontrei, caído na calçada, um rolinho de papel de jornal contendo vinte moedas de prata de dez escudos. Mas, este acontecimento, faz parte de outra história.
Mesmo junto à linha dos comboios, à direita de quem segue para a Corujeira, era a Quinta do Mitra, hoje esventrada pelos acessos à VCI. Um pouco mais à frente, mas do lado esquerdo,os domínios dos Ferreira dos Santos.
O terreno da casa onde eu nasci, confinava a Sul com uns campos de semeadura dos ditos Ferreira dos Santos. Apenas um ribeirito, com águas vindas do Matadouro Municipal, separava os dois terrenos.

Um pouco mais à frente, mas do lado esquerdo, um pequeno aglomerado de muito humildes casitas. No galinheiro de uma delas, enforcou-se, sentado, o Hermínio.
Mais acima, era a nossa mercearia.
Como o seu dono era casado com uma filha dos donos da Quinta do Mitra, as pessoas chamavam-lhe a Loja do Mitra.
Dez metros acima, moravam os Guedes.
Era gente de posses, que não se mostrava muito aos mortais lá do sitio, mas eram muito educados. O chefe da casa, era Inspector dos Caminhos de Ferro e passava mais tempo na Bélgica do que em casa. Ele era o Delegado da CP, na aquisição de locomotivas.

Em frente dos Guedes, era a nossa casa.
Quando eu nasci, a nossa casa era, a Sul, encostada a outras casas e, por isso, recebia muito pouco sol, e como a minha irmã Francelina tinha problemas pulmonares, o seu médico, sempre que podia, pressionava o meu Pai para que construisse outra casa, ao lado, mais solarenga.
Isso, dizia o médico, pode ser a salvação da sua filha!...

O meu Pai era um génio... Assim; logo que as finanças domésticas o permitiram- estavamos em 1934 - deu-se início à construção. Foi uma tarefa gigantesca.
Naquele tempo, à mesa, eramos doze!...
Toda a gente, fosse homem ou mulher, trabalhou para a nova casa...
A casa ainda lá está. Mudou de donos, e o seu enorme terreno foi sugado para garagem dos transportes colectivos.

Ao lado da nossa casa, era a casa do irmão mais velho do meu Pai, o Tio da pêra.
Encostada a esta, a Norte, era a casa dos Carroças.
Este prédio era de lºandar, tal como o nosso e o dos Guedes.
Já perto da Praça da Corujeira, era o carvoeiro Rocha. Além de carvão- de choça e de pedra- também vendia petróleo e azeite.
Em frente à carvoaria, era a casa onde, nos anos sessenta, viveu o doutor Mauricio Esteves Pereira Pinto, que viria a emprestar o seu nome, à minha velhinha Rua de Vila Meã.

Em frente à loja dos Rochas, era a Escola Infantil.
Lembro com muita saudade, a Dona Mimi, a minha educadora. Foi nesta Escola que aprendi as primeiras letras e fiz a aprendizagem cantada da tabuada...
Estou a ver-me e a ouvir-me, com a chuva a tamborilar nas vidraças e a miudagem, cantando:Dois vezum...dois, dois vez dois...quatro, três vez três...nove...
Esta, "era" a rua onde eu nasci.

PS- A minha irmã Francelina, morreu de velhice.
Valeu-lhe a sabedoria do meu Pai e, quiçá, o sacrificio de todos os seus irmãos.























quarta-feira, 14 de maio de 2008

A Pepsi

Certo dia, o Jorge, o nosso filho mais velho, levou para casa uma cadelinha muito bonita e apenas com alguns dias de vida. A Mãe do Jorge, sobre quem recairiam as futuras tarefas de olhar pela bicha, não concordou muito com a adopção, mas o trio, Jorge+Kekas+Nita,tanta força fizeram que a cadelinha ficou. Ficou e foi muito feliz até um pouco antes de morrer, como veremos adiante. Era "raçada" de Setter com Bulldog, cor acastanhada e riscas transversais mais escuras.
Com o rodar dos tempos, tornou-se o centro das atenções de toda a família e da pequenada lá do sítio.Por proposta do Jorge, que foi aceite unânimemente, passou a chamar-se Pepsi, uma bebida adocicada, acabada de ser lançada no mercado,no fim dos anos cinquenta.
À tal cadela, só lhe faltava falar. Mas ela nem precisava disso...já que ela e a sua dona e tratadora entendiam-se tão bem, que era uma maravilha apreciar.
A casa onde agora a Pepsi morava, situava-se a poucos metros do mar e, talvez por isso, a Pepsi nadava que era um encanto. Nadava tão bem que a pequenada nossa vizinha afastava-se, mar dentro e depois, fingindo afogar-se, gritavam pelo seu nome... e a inocente Pepsi lá ia socorrê-los.
Os marotos agarravam-se-lhe ao rabo e vinham de boleia até à praia.
É claro que a malta tantas fez, que a Pepsi passou a ignorar os pedidos de socorro, deixando- se ficar magestáticamente sentada na praia...a olhar o mar.

Foram inúmeras as cenas de que fui protagonista, eivadas de defeitos e virtudes, mas, cá para mim, e porque se tratava de um canino, ela tinha mais virtudes que defeitos.
Era glutona, mas portava-se à "sua" mesa, com muita dignidade.
Como todos os da sua raça, gostava muito de carne mas, antes que a pudesse comer era preciso dar-lhe expressa autorização e, enquanto tal ordem lhe não fosse dada, sentava-se sobre os quartos trazeiros e, de olhar fixo no prato da carne, desfazia-se em baba...metia dó.
É claro que jamais a desiludimos; depois de cada suplicio, ganhava invariávelmente o seu quinhão.
Em certos "períodos" tinhamos mais cuidados com ela, pois não queriamos que tivesse filhos, mas, um dia, enquanto o seu guardião e dono, desatento, lia um livro à sombra de uma das duas belas mangueiras que adornadavam o nosso quintal, um belo e grande cão "parece-me que o dos nossos vizinhos Hortas" cobriu-a.
Toda a gente acompanhou a sua gravidez e o parto.
Depois, quando a ninhada nasceu, cometemos a barbaridade que a tradição recomendava, eliminando parte da ninhada.
A Pepsi, impotente, assistiu à eliminação, mas acho que é bom que todos saibam que a pessoa que executou tal tarefa nunca mais pôde entrar no nosso quintal sem ser agredida pela Pepsi.

Tal quintal, muito agradável de desfrutar, tinha uma caracteristica negativa...estava à mercê de lacraus vindos das travessas de madeira existentes sob os carris da via férrea proxima.
Um dia, a sua dona, perseguiu um deles com uma vassoura, mas não conseguiu matá-lo e o bicho desapareceu. A Pepsi, como era seu timbre, acompanhou com todo o interesse esta cena.
Mais tarde, já depois de recolhidos, ouvimos a Pepsi ganir estridentemente.
Céleres, ainda pudemos ver a escapulir-se, um enorme e negro lacrau. A Pepsi, deitava sobre o cimento, gania e espumava abundantemente.

Era evidente que o lacrau a tinha picado.
Imediatamente solicitamos os favores do nosso amigo e enfermeiro Armindo, que agiu de imediato. Depois da inoculação de um anti-veneno e de um sedativo, a Pepsi ficou alimentada a soro...portando-se com todo o brio.
Mimada, olhava-nos como se nos pedisse compaixão pela sua dor...
Depois, durante a convalescença e porque passava a maior parte do tempo deitada, passamos a dar-lhe de beber a água através de uma chávena...ela, mantendo-se deitada punha a lingua de lado para a sorver.
Mais tarde, já completamente recuperada, a Pepsi apenas bebia àgua pela "sua"chávena.

Entretanto; os tempos mudaram.
Surgiram os inevitáveis ventos da libertação que arruinaram o respeito, a disciplina e a ordem.
A Pepsi, que cumprira com todo o empenho a sua missão, apareceu, certa manhã, morta.
Alguém, durante a noite, a envenenara.

Não sei para onde irá a "alma" dos cães, mas eu gostaria que ela soubesse que ainda hoje, decorridos que são quarenta anos depois da sua morte, ainda a recordamos com a gratidão que ela sempre fez por merecer.

Porto, 06.06.06

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quinta-feira, 24 de abril de 2008

Ai, Eugénia!...

Naquele dia,o doutor Rodrigo Leão não se sentia muito bem.

Já na véspera,tinha sentido ligeira tremura no corpo e uma pontinha de febre.
Não deu importância.De madrugada,quando acordou,estava em brasa.
Mediu. Quase trinta e nove.
Como pôde,ligou à recepção para que lhe chamassem o seu médico.
Pediu ainda que ligassem para a doutora Eugénia Leal, a informar o seu estado.

A doutora Eugénia, sua namorada,chegou primeiro.
Quando,uma hora depois chegou o médico,já o doutor Rodrigo ardia em febre.
Passava dos quarenta graus!...Já não dizia coisa com coisa.
Ele próprio,aplicou ao doente uma injecção e entregou ao gerente do hotel a
prescrição dos remédios que o doente deveria tomar.
Entendeu ainda o médico que a doutora Eugénia deveria retirar-se. Era um risco
manter-se ali.Porém,a doutora Eugénia, não foi capaz.
Todos os dias visitava o seu namorado.
Por vezes,já o dia rompia,quando regressava a sua casa.

O jovem doutor Rodrigo Leão era advogado.Tinha consultário na baixa e por não
ter família naquela cidade,tinha preferido alojar-se num hotel.
Deste modo, tinha quase tudo ao seu dispor.
Porém,a sua confidente e namorada,a doutora Eugénia,era o esteio da sua vida.

Durante três dias,febres altas minaram as forças do doutor Rodrigo.
Ao quarto dia começaram a ceder.
Agora,no quinto dia,a febre tinha desaparecido completamente e a juventude do
doutor Rodrigo começava a impor-se.
Ainda trémulo,ergueu-se.Enfiou o roupão e deu uma passadas pelo quarto.
Olhou-se ao espelho e sorriu.Estava a recompor-se.
Ligou para a recepção e pediu alguma coisa para comer.Soube-lhe bem.
Meteu-se novamente na cama...respirou fundo.

Foi a porta do quarto,ao abrir,que o acordou. Era o empregado do hotel que, fiel
desde há quatro dias, vinha tratar da sua higiene,ministrar-lhe os remédios e
alimentá-lo.Era já quase meio dia.
Pelas treze,trouxeram-lhe o almoço;coisa ligeira.
Deitou-se sobre a cama,piscou duas ou três vezes e voltou a dormitar.

Acordou,já perto das cinco,com um beijo da sua namorada, que lhe perguntava:
Como passa,desde ontem,o meu amor?
Puxou uma cadeira e sentou-se junto à cabeceira.Seus joelhos roçavam a cama quando
amorosamente afagava o rosto de Rodrigo.
Ele mimado,e poisando uma mão sobre um joelho da Eugénia,sussurrou:
Agora,muito bem...já lá vai o mal.
O que a Eugénia leu,nos olhos dele,obrigou-a a erguer-se.
Afastou-se um pouco da cama...deu galantemente uma volta e perguntou: Gostas?
A Eugénia,vestindo uma camisolinha azul claro e um coletinho enfeitado com renda
e saia plissada da cintura para baixo,estava deslumbrante.
Ele,com a cabeça, disse que sim. Depois,com um gesto,chamou-a...
Ela,também com um gesto,disse que não...
Ele insistiu...Ela resistiu...
Ele,agitado,suspirou exclamando: Ai,Eugénia!...Eugénia!...

Era evidente que o jóvem Rodrigo Leão estava a recuperar a forma...

sábado, 12 de abril de 2008

A"netinha"

À porta principal do Infantário,uma garota,depois de tocar a campaínha, chamava: Senhora...Senhora...está um cãozinho muito pequenino debaixo do carro da senhora!...Foram ver.
Era uma bolinha de cor negra,a gemer, e a procurar ávidamente uma teta. O primeiro impulso da Dona Anabela,foi o da rejeição,quando pensou: Não quero cães lá em casa...
Eu nem sequer tenho onde os pôr!...
Depois,sopesando na mão esquerda a esfomeada bolinha de carne...deixou escapar; só se
fosse na varanda!...
À noitinha,em casa, falou com os seus dois filhotes.
Pronto.A bichinha, era uma fêmea,já tinha lar.Todos concordaram que o território da
bichinha,seria o da varanda das traseiras.
Depois,foi preciso baptizar o novo membro da família e, de nome em nome,lembrou-se a Dona Anabela, da cadela de estimação que mais de trinta anos antes os seus pais tiveram no Lobito, em Angola,que alguém estimulado pelos ventos da libertação envenenara.Lembrou-se depois de outra cadela que um seu irmão tivera em Olhão, e que
deixou saudade a todos quantos com ela lidaram, e a quem, em homenagem à cadela do Lobito, também chamavam de PEPSI.
E porque não?
À de Olhão,chamava-lhe a sua dona, por graça, de "neta"- daí o nome deste apontamento- tal era o carinho que lhe dispensavam.
Estava decidido.Passariam a chamar-lhe também Pepsi.

Esta,adorava os seus donos,especialmente a sua dona. Era a sua sombra.
Agia como gente...

Um dia, a sua dona resolveu levá-la a passear para o Parque da Cidade,
Sentadas,a dona num banco do jardim e a Pepsi na relva,viam os patinhos voltear no lago.
Ali pertinho,sentado sobre uma grande pedra de adorno da relva,um sujeito comtemplava
também o edílico cenário.

Pouco tempo depois,o sujeito,dirigindo-se à Dona Anabela e enquanto exibia de relance
o seu crachá,diz-lhe: Pode fazer o favor de me mostrar os documentos do animal?
A dona da Pepsi estava tramada.
---infringiu o disposto do nº3,do nº2,e da alínea a) do nº1,todas as alíneas do Artº
14 do Dec.Lei nº 314/2003 de 17 de Dez.
E,apesar de nos autos constar que:
---"na verdade,a conduta da arguida merece apenas um pequeno nível de reparo pois
desconhecia a ilicitude da sua conduta e nunca o seu canídeo causou qualquer dano, ao
circular pela via pública".
Em consequência são lhe aplicadas, através da Junta da Freguesia de Rio Tinto, as
seguintes multas:
a) - Uma coima no valor de 100€,pela falta da licença do canídeo de raça indeterminada;
b) - Uma coima no valor de 100€,pela falta do registo do canídeo de raça indeterminada.

Isto,para um canídeo que até já foi premiado num certame em que interveio a Junta da
Freguesia de Rio tinto,foi duro...

quinta-feira, 27 de março de 2008

A Lua

Naquele Setembro,para variar,o grupinho dos cinco,iria ter a companhia do sobrinho/
afilhado Jorge,que lhes pedira insistentemente para os acompanhar.
Iriam acampar um pouco por todo o país.Assim,no dia aprazado,ainda o sol nascia e já
eles estavam na estrada.A bordo,reinava a alegria e a boa disposição.
Os primos de lá -Angola- gosavam o primo de cá. Ele,o primo de cá,lorpa de aparência,
não tinha nada de parvo.Dava-nos cada resposta que nos punha de boca aberta...
Naquele tempo,ainda não havia auto-estradas.Por isso,seguiamos pela velhinha EN1,e foi algures à margem desta via que tomamos o pequeno almoço.
Perto do meio-dia,já com os estômagos a protestar,paramos para almoçar.
O restaurante não tinha grande aspecto e,por isso,só eu desci.Fui investigar.
Olhei em redor.Três pequenas mesitas,com toalhas garridas...modesto,mas limpo.
Aproximou-se de mim,do lado de fora do balcão,uma alentejana ainda jóvem,de lenço
garrido sobre a cabeça.Foi sorrindo que perguntou;Que vai o meu senhor querer? Nós
somos seis,respondi:Dois adultos e quatro jóvens...será que podemos almoçar?
Se podem almoçar? Claro que podem,nós estavamos à vossa espera...Ela própria assomou
à porta da rua e,acenando para o nosso automovel exclamou:venham...podem vir...há
lugar para todos!...
Tivemos sorte ao parar ali.
Comemos de tudo um pouco.Porém,como aquilo era uma taberna,a nossa refeição foi à base de petistos. E que petiscos!?...
Ainda hoje,que os jóvens já são Avós,falamos deste almoço...Até do preço temos saudades!...Seis pessoas comeram e beberam,por pouco mais de trinta escudos!...
E o remate!? Quando lhe estendi as duas notas de vinte e lhe disse para guardar o troco,já não me deixou sair sem provar um cálice do "seu" medronho...
Fomos armar a tenda em Lagos.
Dormimos junto da praia,uns quase em cima dos outros,mas...muito felizes.
Ao levantar,como bons provincianos,fomos molhar os pés...é que nem tudo lembra...e nós não tinhamos levado fatos de banho.
Tomamos o pequeno almoço por ali.Depois,ao longo da EN125,fomos parar a Vila Real de
Santo António,onde fizemos uma grande pausa.
Todos quizeram ir a Espanha...era só atravessar o rio!...Mas não pudemos ir todos.
Os dois rapazes mais velhos não puderam ir...é que eles poderiam dar o "salto"para
fugir à tropa...em Angola,havia guerra...
Por isso,apenas foram ao outro lado; a miúda angolana,o sobrinho/afilhado e o casal de adultos.
Foi aqui,no regresso da ida ao outro lado,que aconteceu a história da Lua.
A noite estava limpida,linda.O belo circulo da Lua exibia-se lá do alto...o nosso
sobrinho,olhando-a do outro lado,exclamou:Ó padrinho,aquela é a Lua espanhola,não é?
Fomos armar a tenda em Monte Gordo.Os mosquitos não pararam de nos apoquentar.
Definidos os azimutes,decidimos ir dormir a Viseu e lá fomos serra acima.
Quando a miudagem começou a ficar inquieta,paramos no primeiro restaurante que nos
apareceu à beira da estrada.Azar nosso!...
Com que saudades recordamos a tasquinha alentejana!...Apetecia chorar.
Talvez por isso,o céu também desatou a chorar...
De tenda armada no parque do Fontelo,em Viseu,ninguém conseguia dormir...chovia mais
dentro da tenda do que na rua...
Só nos restou guardar e encafuar no automóvel todos os trastes e correr para a cidade
da Guarda onde,alugando um Bungaló,pudemos descansar o resto da noite.
Quando amanheceu,o sol raiava de novo.Os encartados campistas amadores,que trouxeram para o "campo" uma tenda de "praia",puseram todos os panos a secar ao sol...
Fazia lembrar um arraial de ciganos.Porém; todos muito bem dispostos.
Esta imprevista paragem na Guarda,teve duas virtudes:A oportunidade de visitar o Castelo de Belmonte e ainda o de abraçar um saudoso amigo que,por aposentação,deixara
Angola alguns anos antes.
O Alvaro Nascimento e a sua simpática esposa,receberam-nos com todo o carinho.
A refeição que nos obrigaram a aceitar,ainda hoje é gratamente recordada.Veja-se:
Pão de centeio,acabado de sair do forno.Uma perna de presunto para retalhar.Um enorme
queijo da serra,devidamente entrapado e,vinho da própria lavra...um sonho.
Aos jóvens,foi-lhes oferecida uma sopinha caseira que cheirava que era uma delícia,
mas ninguém os conseguiu convencer das vantagens da sopinha...
Excepto no vinho da própria lavra,toda a gente alinhou na receita dos adultos.
Depois da despedida,rumamos para o Nordeste.Mais uma vez tivemos de corrigir a rota.
A chuva voltou a cair.
Estavamos em Vila ,Real e decorria ali uma Feira de divulgação dos vinhos verdes daquela região.
Porque a chuva se impôs,a nossa digressão terminou ali.
Mas,durante umas boas semanas,em casa, no Porto,apenas se bebeu verde de Vila Real.

quarta-feira, 26 de março de 2008

O cabide

Naquela fria manhã de Janeiro,junto ao portão nascente do Tribunal de Gondomar,havia grande alarido.Gente p'ra trás e p'ra a frente,cadernos de notas à mão,câmaras de filmar e muitos jornalistas.
Não resisti e perguntei a um daqueles azafamados portadores de cadernos de notas:
desculpe; a que se deve todo este cenário?
O jornalista sorriu, e respondeu: é o apito dourado,amigo!...vem aí o Valentim...
Eu,estava esclarecido.
Subi as escadas e fui para o hall, onde muitas pessoas aguardavam ser chamadas para
intervir nos mais diversos julgamentos.
Para matar o tempo,fui-me entretendo a ler os vários documentos afixados.
Entretanto,surgiu-me a necessidade de usar os sanitários.
Quando me preparava para o acto,verifiquei que nada havia onde eu pudesse pendurar o
sobretudo...foi uma situação caricata que me dispenso de descrever.
Aliviado da tripa,decidi agir.Dirigi-me a um segurança e perguntei-lhe onde poderia apresentar uma reclamação.Apontou para um guiché.Lá fui.
Nisto,ouvi grande alarido.
Era o senhor Major que chegava;discreto.Apenas duas ou três pessoas o acompanhavam.
Chegado ao guiché,pedi: Por favor...alguém lá do fundo da grande sala,perguntou: o que pretende? Fazer uma reclamação,respondi.
Reclamação!?...Que reclamação!?...Quero fazer uma reclamação no livro próprio.
O homem fez uma cara de espanto e arreganhando a queixada olhou para os seus colegas
e respondeu-me dizendo:O livro está na Secretaria Geral.Terceiro guiché, aqui deste
lado. Agradeci e fui.
Atendeu-me a Dona Aurora.O que pretende,disse:Pretendo que seja accionada a accão necessária para que seja instalado um cabide no interior do WC dos homens e quero registar esta minha pretensão no livro de reclamações.
A Dona Aurora estava perplexa!...
O Senhor quer que seja instalado um cabide na porta do WC dos homens!?...
Sim,minha Senhora.
A Dona Aurora,inquieta,desabafou:O Senhor faz ideia do trabalhão que vai dar,a tanta
gente, se escrever isso no livro?...Olhe que temos de mandar uma data de cópias para
tanta gente que o Senhor nem imagina!...Olhe que o livro ainda está em branco!...
Desolada,a Dona Aurora voltou a desabafar:Até hoje,ninguém reclamou nada!...
Eu,já com alguma pena da Dona Aurora,insisti: Mas,minha senhora; é apenas um simples cabide...uma coisita de metal ou até de plástico...que custa poucos centimos!...
A Dona Aurora,já arisca,ripostou: O Senhor sabia que nós,neste Tribunal,não dispomos de qualquer verba,seja para o que for!...Aqui, falta tudo...não temos dinheiro para
nada...
Depois,em tom de súplica,insistiu:O Senhor,continua a querer o livro de reclamações?
Fiz uma pausa,para depois exclamar;Desisto,minha Senhora,não quero tão grande peso na minha consciência...
A Dona Aurora,reconhecida,baixou o seu tom de voz para dizer: Não há dinheiro,mas eu
prometo que,quando cá voltar,irá encontrar fixado,do lado de dentro da porta do WC dos homens,um cabide.Nem que tenha de o pagar do meu bolso!...

Ainda há gente de palavra neste mundo...
Dias depois,de propósito,fui lá ver.

O cabide já lá estava.

terça-feira, 18 de março de 2008

Mão amiga

Sob o alvo lençol que o cobria, o paciente estava nú.
Deitado na marqueza, já sob as potentes luzes da sala de operações e sobretudo devido ao efeito da anestesia, pairava no ambiente que o rodeava, uma extraordinária leveza, apenas afectada pela ansiedade de saber como ficariam os seus olhos, depois da intervenção às cataratas que estava para lhe acontecer.
Iam "tratar-lhe" do olho esquerdo.
O direito, seria tratado depois, de acordo com o comportamento do esquerdo.
Alguém poisou uma qualquer cobertura sobre o rosto do paciente, depois de lhe terem fixado a cabeça à cama, para que não pudesse movê-la.
Depois, cada vez mais atordoado, sentiu que lhe descobriam o olho a intervencionar. Era uma luz intensissima, que o olho interpretou como semelhante ao sinal aritmético de igual: dois tracinhos paralelos, de cores incandescentes.
O paciente ouvia todos os sons à sua volta e raciocinava perfeitamente. Pelo menos assim supunha, pois...pensando melhor...um tanto atordoadamente.
Mas sentia remexer no interior do olho...não sentia dor, apenas uma desagradável sensação, acompanhada de um odor que ele não conseguia classificar...
A quê?...a queimado ?...
O cristalino do seu olho esquerdo, depois de destruído pelo lazer, estava agora a ser sugado.
O paciente ouvia perfeitamente o silvar do pequeno, mas eficiente, aspirador.
Ainda conseguiu ouvir a voz de alguém, ao dizer: Ainda há ali um pedacito...E outra voz replicar:
Estou a vê-lo perfeitamente...para logo acrescentar; Pronto, já saiu, já está limpinho...
Foi por esta altura que sentiu "qualquer coisa" tocar-lhe na coxa esquerda...algo que se movia...
Depois, foi a sua mão esquerda, postada ao longo do seu corpo, que foi tocada...
Outra mão, tacteando, procurava a sua mão... Encontrou-a, tocou-lhe ligeiramente...depois, a intrusa mão, encaixou-se com a mão do paciente...envolveu-a, sedosa e meigamente...
A mão anestesiada, agradeceu a esmola daquele carinho e, tanto quanto pode, apertou aquela mão amiga. Não sentiu, depois disto, nada mais...
Bendita mão.
Voltou a ouvir, algum tempo depois, uma das vozes dizer:
Pronto, acabou, ficou excelente...está pronto para outra...
A mão, separou-se então da mão dormente... que, ficou com pena...
Duas horas depois, o paciente, já vestido e pronto para regressar a sua casa, ainda sentia na sua mão esquerda, a suavidade daquele toque, daquela mão amiga...

Era uma vez...

Em tempos que já lá vão, existiu uma família composta de Pai, Mãe, e cinco filhos; três meninas e dois meninos. Porque eram muitos e o dinheiro que o Pai ganhava era pouco, viviam com algumas dificuldades. Mas não passavam fome!...simplesmente não podiam comer o que gostariam. Também não podiam vestir ou calçar o que queriam, mas apenas aquilo que os seus pais pudessem comprar-lhes. As roupinhas das meninas mais velhas eram "arranjadas" para poderem servir às mais novas. E com o calçado era a mesma coisa. Os Pais sempre davam um jeito para que todos andassem sempre muito asseados e com as barriguinhas cheias. Os Pais eram muito governados, quer dizer, não gastavam nada mal gasto. E tinha que ser assim, pois de outro modo como poderiam alimentar as sete bocas e trazer os cinco filhos na escola ?

Naquele tempo ainda o povo não sabia o que era o "planeamento familiar"e as famílias eram quase sempre assim, muito numerosas...é que fazer o que quer que fosse, para impedir a vinda a

este mundo, dos meninos ou meninas, era um pecado mortal...

Já a Mãe desta Mãe, e as Mãesde todas as outras Mães, tinham sido Mães de muitos meninos e meninas. Porém, graças ao sábio controlo do parco salário do pai, esta família vivia sem dever nada a ninguém, e todos os filhos andavam na escola. O mais velho na Escola Industrial, e a menina, a mais nova de todos os cinco, já aprendia as primeiras letras na Escola Infantil.


A Mãe, graças a Deus, gosava de boa saúde. Já o Pai, não. Sofria do estomago.Já tinha feito radiografia e a ulcera era bem visível.

Se a dieta e a medicação não curassem a ulcera, teriam de encarar a operação cirurgica que, naquele tempo, era muito arriscada. Porém, parecia inevitável. Assim, certo dia, o Pai, acompanhado pela Mãe, iam a caminho do hospital, quando se aproximou deles um cauteleiro tentando vender-lhes uma "cautelinha". A Mãe, angustiada, perante a insistencia do cauteleiro, desabafou: Ó homem!...então você não vê que o meu marido está muito doente!?...Olhe que ele vai a caminho do Hospital para fazer uma operação ao estomago!...

O cauteleiro, aparentando estar alarmado, sentenciou: Você não vá...olhe que você vai entrar pela porta da frente, mas pode ter de sair pela porta de trás!...não vá...não vá!....

O casal entreolhou-se. O Pai, falando com os olhos, perguntava à Mãe; Voltamos para trás?...

O cauteleiro, profundo conhecedor do seu oficio, insistia; Não vá homem...compre-me uma cautela...volte pra casa...durante dois ou três meses beba só leite, e não se rale muito co'a vida...

olhe que muita ralação faz má digestão!...


A argumentação do cauteleiro prevaleceu.

Compraram uma cautela ao coxo e voltaram para casa.

Depois, bem, depois, aconteceu o primeiro milagre. No sábado- naquele tempo a roda da lotaria andava ao sábado- verificaram que a cautela estava premiada. Não foi grande o prémio, mas foi o suficiente para realizarem um sonho antigo; comprar um belo cordão de ouro, que era o desejo de todas as mulheres e, por outro lado, era como um depósito bancário...estava sempre a valorizar.


Depois, o segundo milagre, foi acontecendo...a família cresceu. Chegou aos doze!...

E quando o Pai faleceu, já na casa dos noventa, ainda a tal operação não tinha sido feita...



A rabeca

Estavamos em finais de 1948 e o cenário era oferecido pelo Bairro residencial da Pooling em Nova Lisboa, Angola. Tal Bairro era constituído por casas de quatro, três, ou duas assoalhadas, conforme os agregados familiares. No fundo de cada quintal, situavam-se os anexos, que eram constituídos por lavandaria, quarto de dormir do empregado/a, casa de banho com duche, lavatório, sanita e cozinha.
Um dos utentes da "Pooling"era um soldador, muito competente, conhecido como Zé da Rabeca.
Era casado com a Dona Elvira e tinham três filhos: Dois rapazes e uma menina.
A empregada para todo o serviço era uma mesticinha ainda jóvem que, como é lógico, ocupava o quarto de dormir dos anexos.
Tudo decorria naquela casa com normalidade, até que um dia a Dona Elvira pareceu ver uma certa troca de olhares e um cochicho, entre a Zulmira, a empregada, e o seu Zé.
Atenta, a Dona Elvira reparou que, certa noitinha o seu Zé, de rabeca ao ombro, se preparava para, à sorrelfa, sair de casa. Também à sorrelfa, a Dona Elvira seguiu o marido e viu sem grande surpresa que este se dirigia para os aposentos da empregada.
Saiu-lhe ao caminho e enfrentou-o dizendo: Para onde vais meu menino?...
O seu Zé, vendo-se descoberto, decidiu fingir; e semicerrando os olhos e estendendo os braços para a frente, soletrou: Deixa-me mulher, deixa-me que eu sou sonambulo...
A Dona Elvira, sem hesitação, terá dito: Ai tu és sonambulo? Então espera aí que eu já te acordo.
E, sacando a rabeca do ombro do seu Zé, espatifou-lha sobre a cabeça...
É claro que o Zé nega.
Diz ele que de facto a rabeca se espatifou, simplesmente porque ele tropeçou e caiu em cheio sobre ela...
Estórias!...

segunda-feira, 17 de março de 2008

O buquê

Naquele tempo, muito antes de ser o Inspector Principal da C.P. Minho e Douro, o Senhor Inspector esteve estacionado na Régua uma boa meia dúzia de anos, onde criou perenes amizades.
Um dia, a casa Ferreirinha, creio que numa qualquer comemoração, ofereceu um beberete às pessoas gradas da terra.
Foi muito prestigioso para o senhor Inspector Principal o convite que recebeu, já que ele deixara a Régua ia para dez anos.
Nessa ocasião, quem chefiava aqueles serviços na Régua era um cunhado do senhor Inspector, também convidado, e que tinha a sua residência permanente em Campanhã.
Foi bom. Fariam companhia um ao outro. Iriam e regressariam juntos.
No beberete, como era esperado, estavam presentes os mais prestigiados convidados.
Houve discursos.
Iria seguir-se a prova. Alguém pediu silêncio.
Um gourmet, devadamente paramentado, anunciou: Excelências; Vai ser servido o mais nobre vinho das nossas caves...um vintage de 1758, que mereceu as melhores referências no catálogo da Christie`s em 1765!...
Seguiu-se um outro de 1820... a seguir outro vintage de 1851...um nunca acabar de preciosidades, sempre acompanhadas de saborosos aperitivos.
Numa salinha, ao lado daquela onde decorria o beberete, havia mesmo uns pratinhos com algo mais substancial...espetadinhas de presunto, croquetes, bolinhos de bacalhau...e até umas tirinhas de broa de Avintes, entre outros mimos.
As provas sucediam-se com tal frequência que quem não tivesse "lastro"suficiente, corria o risco de ter de sair dali "amparado".
Era o que ia acontecendo ao cunhado do senhor Inspector.
Já sentados na carruagem de1ª classe que os traria de regresso a Campanhã, o cunhado, atordoado, deixou-se tombar sobre o fofo assento...por entre os seus lábios, ligeiramente abertos,
saía um fino e perfumado laivo de um buquê vintage...
Foi preciso elevar-lhe ligeiramente a cabeça...

domingo, 9 de março de 2008

Linha 401

O condutor do autocarro,foi fixe.
Estava parado num stop quando me viu a atravessar a passadeira.
Nem precisei de pedir.
Eles,que,normalmente,não permitem as saidas ou entradas,fora dos locais assinalados...
Entrei e agradeci-lhe. Respondeu com um ligeiro sinal de cabeça.
Depois de enfiar o bilhete no casulo electrónico,sentei-me.
Atrás de mim,exatamente no lugar que fazia costas com o meu,comecei a ouvir uma voz de mulher que,alto e em bom som,se dirigia a outro passageiro, que eu também não podia ver,já que eu seguia de costas para todo o autocarro.
Dizia então a tal voz: Não querem lá ver?!...Então eu mudei de lugar para não ter chatices,e vem um filho da puta qualquer e desata a palpar?!...E continuou: Eu, logo que me sentei,bem senti a sua mão,pousada no assento debaixo do meu rabo...desconfiei...Depois,começou a fazer-me cócegas nas pernas,o cabrão!...
Uma voz de homem,em tom surdo,pedia desculpas em termos que não entendi muito bem...
O que é certo é que a tal voz aproveitou a próxima paragem para se safar...

A vítima prosseguiu...
Ainda se fosse um gajo jeitoso...agora um cabrão feioso e ainda por cima marreco!...
Chiça!...

Fez uma ligeira pausa para depois desabafar:Até me sinto ofendida...

Pouco depois,quando ela descia do autocarro,pude vê-la através da vidraça...
Era nova,loira e muito jeitosa...

quinta-feira, 6 de março de 2008

O beliche

A viagem começara em Vila Luso.
Eram seis da tarde,quando se fez ouvir o estridente silvo do apito do chefe da Estação,logo seguido pelo início da marcha do comboio e do clássico tan..tan dos
rodados a pisar as emendas dos carris.
Com destino a Nova Lisboa,o casal ocupava um dos coupés da carruagem.
Ainda o comboio não tinha chegado à Chivanda e já um empregado da carruagem restaurante batia discretamente à porta do compartimento,avisando de que iria
ser servido o jantar.
Quando regressaram,pouco passaria das 19 horas,recolheram-se ao seu coupé.
Puseram-se à vontade e cada um trepou para o seu beliche.
Ele no de cima,ela no de baixo.
Ela lia uma revista de modas.Lá em cima,ele,lendo um policial,ouvia o folhear...
Voltou a ser ouvido o tan..tan dos rodados...
Ajudava a chegada da vontade de dormir...
Ele,em cima,deixou de ouvir o folhear da revista de moda.
Olhou o seu relógio.Pouco passava da uma da manhã.

Algum tempo depois,a cama de baixo mexeu-se.
Ela,mimalha,gemia: Tenho frio!...
Ele,solicito,respondeu:Queres que te vá aquecer?
Sim,vem: Disse ela. Trás o cobertor...

Ele desceu.
Carinhosamente,cobriu-a.

Eram 6:30 quando uma leve batida na porta,os avisava da chegada a Nova Lisboa.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Pobre Hermínio

O Hermínio era um infeliz.
Casado,esposa com pouca saúde e vivendo cheia de desgostos,dois filhotes ainda
muito pequenos.
Ele não era má pessoa; Apenas bebia para além da conta.
Todo o dinheiro que lhe ia parar as mãos,era transformado em vinho.
Uma pena!
Um dia,por não ter pago em devido tempo uma dívida,numa loja,confiscaram-lhe um
terço,do seu já escasso ordenado.
A sua vida,que já era dificil,tornou-se impossivel.
Tentou suicidar-se,como se isso fosse a solução para as suas dificuldades...
Meteu-se a frente de um comboio.
A violenta pancada atirou-o para a valeta.
Esteve uma grande temporada no Hospital e,quando regressou,vinha todo torçido
das costas e coxo...
Não viveu muito tempo mais.

Uma manhã foram encontrá-lo morto no interior de um galinheiro situado no fundo
do seu pequeno quintal.O Hermínio,em vida,media cerca de 1,75 metros de altura...
Quem quisesse entrar no tal galinheiro, teria que se baixar.

Desesperado,o Herminio,sentou-se no chão do galinheiro...e bebeu,bebeu,até tombar.
Morreu enforcado...sentado.

A cordita que usou,que nem corda era,com nó górdio e tudo,pouco mais de um
metro tinha!...

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Passe bem...

No bolhão,a fila para o 94,já era longa. À minha frente estavam algumas vinte.
Ao meu lado,na fila,postara-se uma senhora que se manifestava contra todos aqueles que tinham a mania de passar à frente dos que já estavam na fila a esperar.
Um pouco à frente,um homem de cabeça descoberta -estavamos em Janeiro- e cachecol
enrolado no pescoço,tentava caracterizar o perfil de um carteirista.
Todas as conversas terminaram quando o 94 chegou.Toda agente procurou,ligeirinho,
ocupar o seu lugar.Por acaso,a senhora que estava a meu lado na fila,era novamente
minha companheira, mas desta vez sentada.
A partir da Corujeira,começaram a entrar muita mulheres com grandes ramos de flores.
Questionada,a minha companheira logo informou que por ser tarde de quinta feira,o
mercado das flores tinha muito movimento,já que pelo fim da tarde os comerciantes vendiam as flores ao preço de saldo,já que, no dia seguinte,meio murchas,as flores já não seriam vendáveis.Assim, nesta conversa meio mole,fui-me preparando para sair.
Ergui-me e pedi licença à minha companheira para passar.Ela deu um geitinho ao corpo,
enquanto me dizia; Passe bem.
Já comigo apeado,o 94,retomando a sua marcha a caminho de Valongo,passou por mim.
A minha ex-companheira,através da vidraça,disse-me adeus sorrindo.
Já perto da minha casa levei a mão ao bolso à cata das chaves e...tive um sobressalto.A minha carteira não estava no bolso de trás das calças!...
Alguém me tinha roubado a carteira!...

Ainda hoje,decorridos que são mais de dois anos,me custa aceitar que tenha sido a velha senhora!...

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

A bem amada

Era uma senhora franzina,rosto triste e sem carmim,cabelos longos cor de cinza.
Viúva recente,vivia ainda chorosa a ausência do marido e companheiro de sempre.
Recente era ainda a sua necessidade de ocupação dos tempos livres,já que se apo-
sentara hà menos de um ano. Para os preencher,solicitou a sua inscrição na SOS
Vida.Porém,cedo se viu na necessidade de mudar de ocupação,pois os dramas que
diariamente era obrigada a enfrentar eram de tal ordem,que foi aconselhada pelo
seu médico a abandonar tal tarefa.
Optou por se inscrever numa Universidade Sénior.
Porque a cadeira que escolheu era a de Inteligência Emocional,era frequente ter
de defender os seus pontos de vista sob a pressão resultante da sua viuvez,ela
que fora uma mulher muito bem amada.
Certa vez, o Docente da cadeira,para vincar a necessidade do controlo das emoções
fez ouvir os seus pupilos uma gravação da Maria Bethania, em que esta cantava:

Sei tudo o que o amor,
É capaz de me dar.
Eu sei.Já sofri,
Mas não deixo de amar.

Foi chorosa que a franzina senhora acompanhou,cantando, os dois ultimos versos,mas foi arrebatadamente que concluiu;

Se chorei,
Ou se sofri,
O importante,
É que emoções eu vivi...

Irresistivelmente,todos os presentes a ovacionaram.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

A curva


No fim da tarde, com o sol a enfraquecer,o grupinho deu por finda a sua tarde de
praia,junto do farol de Leça.Os quatro- o Martins,os seus dois filhotes e o seu
sobrinho Beto - regressavam a casa no Hillman preto que o Martins,comprara em segunda mão.Seguiam pela marginal em direcção a Campanhã quando,em Massarelos,o
Martins resolveu subir a rua D.Pedro V. Já no cimo da rua,o Hillman começou a so-
luçar até que,por falta de gasolina,parou.
Como puderam,viraram o carro para baixo e logo que o matulão do Beto escorregou e
caiu,verificaram que não o podiam segurar.Por isso,foi com o Martins pendurado na
porta, de mão direita no volante e o punho sobre a buzina,e os dois miudos já a choramingar dentro do carro, que iniciaram a descida.
O sinaleiro,lá em baixo no cruzamento, apercebendo-se da situação,parou o trânsito.
Com o rio à sua frente,o carro deslizava a toda a velocidade. O sinaleiro, à cautela,
afastou-se. Fez bem. O Hillman,chiando, fez a curva a 90 à hora e só parou na subida
da Rua da Restauração.

Com o Martins sentado na borda do passeio,logo um grupo de mirones, tomou conta da situação.Travaram o carro. Um deles deu ao Martins um copo de água. Outros,afagaram os miudos. Um outro, mais sacana, roubou ao Martins o seu belo boné de praia...
Depois,chegou o policia...quiz saber se era precisa alguma coisa...

Esbaforido,chegou depois o Beto,desculpando-se...Oh, meu tio, eu escorreguei!...

Abastecido o carro,foi o regresso a casa, com o Martins a recomendar aos filhotes que nada dissessem aos Avós...Pois sim!... foi a primeira coisa que o mais velho fez
logo que chegou a casa. Aproximou-se do seu ouvido e descarrregou: Oh, Avozinho...
hoje iamos morrendo todos!...

Claro que o Martins teve que contar tudo,tim tim por tim tim.
O seu "velhote" até se benzeu!...

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Bombons

Naquele dia,poucos alunos estavam presentes.Resquicios do Carnaval.
Por isso,o docente resolveu dar uma aula diferente.
Propoz que elegessemos um objecto do nosso uso constante e dele fizessemos o devido
elogio.O primeiro escusou-se,alegando não ter nada em mente. O seguinte uma mulher
retirou do pulso o seu relógio e fez dele o mais elogioso discurso.
O terceiro,por acaso marido da dama do relógio,elegeu a sua caneta.
Que aquela era a mesma com que escrevera durante os trinta anos da sua carreira e que, do seu bico, sairam inimaginaveis palavras.Esta caneta, dizia com enfase, é o simbolo da minha vida.
Eis que surge o 4º,que elege o seu caderninho de apontamentos.É aqui,que anoto todos
os meus comentários sobre o que penso e sobre o que oiço.
Aqui,se manifesta toda a minha maneira de ser.Quem quisesse e pudesse,bastaria lê-lo para conhecer a grandesa do meu caracter.Por isso o elegi.
O quinto,uma mulher decidiu eleger a sua agenda de bolso.
Enquanto a erguia dizia:Por necessidade é aqui que anoto rodos os passos que tenho a dar,desde coisas insignificantes ás mais importantes.Eu,acrescentou,sem esta agenda seria uma mulher perdida.
Finalmente o ultimo aluno.Uma mulher que tendo todo o tempo do mundo para pensar no
que poderia dizer,demorou um bom tempo para se manifestar.
Pausadamente,arrancou: Todos sabem que me aposentei recentemente e que graças a Deus
goso de boa saude.Tenho muitos e bons amigos, vivo sem dificuldades e por isso posso
dar-me ao luxo de ter algumas extravagâncias,como por exemplo,o prazer de saborear
bombons.Dito isto,levou a mão à bolsa e sacando dela um punhado de bombons soltou-os
sobre a carteira,enquanto dizia: Se são servidos...