quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Formas de dar VIDA aos Anos: Envelhecer com Arte são os meus desejos

Formas de dar VIDA aos Anos: Envelhecer com Arte são os meus desejos: O «Outono da Vida» é a étapa dos Séniores em que se descobre a dimensão mais profunda e humana da vida e do saber.

Semelhante ao utilizado nos blogs
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domingo, 13 de novembro de 2011

O Abafador

Ai, credo!...
Que brutalidade!...
Pasmo perante a coragem de certa gente!...

Quem assim exclamou, foi a sensível e meliflua Alice Guerra, que não podia ouvir falar de certas
coisas.
O professor Hugo Veloso, que nos ministrava a matéria designada por Artes e Humanidades, decidira naquele dia falar-nos sobre a obra de Miguel Torga, nomeadamente o conto " O Alma Grande" inserido na 3ª edição do Novos Contos da Montanha.
A história que Torga nos conta com suma mestria, fala-nos de uma terrinha do nosso nordeste transmontano, onde ainda imperava o ancestral hábito de abreviar a vida dos que não tinham salvação possível, chamando o Abvafador, cuja alcunha era a de Alma Grande.
Tratava-se de um individuo bastante alto, mal encarado e de adunco nariz, que morava no cimo de uma ingreme ruela, pela qual sempre soprava um gélido vento galego.

Quase ao mesmo tempo da exclamação da Alice, outros comentários surgiram:
O Tito Rodrigues, com o lirismo que lhe é peculiar, manifestou satisfação pelo facto deste nosso país ter evoluido o suficiente para acabar com a eliminação de actos tão desumanos.
Por sua vez, o professor, de indicador em riste, foi dizendo que a eliminação de pacientes portadores de enfermidades incuráveis, embora com contornos diferentes, ainda hoje era praticada, embora sob a designação de eutanásia.
Neste caso, tal como nos conta Torga, o paciente Isaac ainda não queria morrer.

Fora a mulher do Isaac e mãe do pequeno Abel, quem mandára o rapaz chamar o Abafador, depois do senhor doutor ter sentenciado de que " nada mais posso fazer".
Assim, foi o pequeno Abel que, trepando a ingreme e ventosa ruela, começou a chamar, ainda de muito distante:
Tio Alma Grande!...
Ó Tio Alma grande!...

Pouco depois, o avantajado Abafador, empurrando com um dos pés a porta do quarto onde sofria o doente, entrou.
O Isaac, que ainda ardia com um febrão que já durava há duas semanas, vendo chegar o seu carrasco, agitou-se.
Quis gritar, mas apenas conseguiu emitir um surdo; Não!...ainda não!...
Mas o Abafador tinha uma missão a cumprir.
Trepou para a cama e logo enclavinhou as suas enormes manápolas nas goelas do Isaac, enquanto posicionava convenientemente as suas pernas de modo a que um joelho esmagasse o peito do paciente.

A atenta aluna, Maria de Céu Pinheiro, tensa, gemeu, enquanto exclamava; Que estúpidos costumes!...
Por sua vez, a Nadir Machado apertava entre as nervosas mãos, a sua dor!...
O Porfírio, sensível à narrativa, terrincava os dentes.

Entretanto, o Isaac, com os olhos a saltar-lhe das órbitas, resfolegava: Não...não...ainda não!...
Porém, o Abafador, com a perícia que a sua experiência lhe emprestava, apertava o gasganete do Isaac que, de peito esmagado sob o joelho do carrasco, estava prestes a sucumbir.
Foi então que surgiu o imprevisto.
O miudo, o Abel, movido pela curiosidade, quis ver.
A porta do quarto onde jazia o seu pai, rangendo, abriu.
O carrasco distraiu-se.
Então, o Isaac, momentâneamente liberto da pressão do joelho e das mãos do carrasco, usou a força que o instinto da conservação nos empresta e, dando um safanão, libertou-se.
O carrasco, sentindo o seu prestigio severamente ferido, saltou para o chão do quarto, deu um jeito à pala doseu boné e, sem perder tempo, escapuliu-se.
Por sua vez, o miudo Abel, espantado e tremendo de medo, ficára finalmente a saber qual era o ofício do Tio Alma Grande.

A turma, toda a turma, e creio que também o professor, respiraram fundo.
Mas a história ainda não acaba aqui...
Ora leiam:
O febrão do Isaac acabou por se ir embora e nõ tardou que ele recuperasse o seu forte arcaboiço de lavrador capaz de dominar, sem ajudas, um bezerro pelos cornos.
Ele, sentia gravada bem fundo no seu entendimento a brutalidade animal do Abafador e jurou que se o destino lhe proporcionasse encontrá-lo um dia à mão...ajustariam as contas.
Sem que desse nas vistas, o Isaac foi-o vigiando.
Mas não era fácil...ele tinha hábitos muito precisos e prudentes. Dificeis de prever.

Até que um dia...
O Isaac apanhou-o a jeito e, pelas costas, rasteirou-o.
O avantajado Alma Grande, sem saber ainda muito bem o que lhe estava a acontecer, já sentia no seu cachaço a caloisa tenaz das mãos do Isaac, enquanto as suas costas eram esmagadas pelo possante joelho do Isaac que, animado pelo seu desejo de retaliação e da força que lhe provinha do facto de ser bem mais novo, não cedia um mlimetro sequer.
Antes pelo contrário.
O olhar do Abafador, de espanto, passou a de desespero...enquanto seu peito parecia que ia rebentar, suas forças abandonavam-no, até que cedeu.

Pouco depois, quando o Isaac desmontado da sua já inerte vitima, regressava a casa, sentia desvanecer-se do seu cérebro o rosto do carrasco.
E, com um sorriso a assomar-lhe os lábios, imaginava agora um caçador a ser abatido pelo ricochete do seu próprio disparo....

A turma entreolhou-se, sorriu e voltou a respirar fundo.

Tempos de crise

Há dias, neste mesmo local de paragem do autocarro da carreira 94, junto do mercado do Bolhão,
assisti à modesta demonstração de um cachorrito que ajudava o seu jovem domador a receber na latita que portava suspensa da coleira, a esmola de umas moeditas.

Dias depois, nesta mesma paragem do 94, observei um homem pobremente vestido que se deslocava com o auxilio de duas bengalas canadianas.
Cantarolava e, como instrumento, batia - uma na outra - com o aluminio das hastes das suas duas canadianas.
Como é bom de ver, os sons resultantes das batidas não eram muito agradáveis...valia-lhes o ritmo, que era sofrivel.´

Desci a rua de Sá da Bandeira e breve cheguei ao Terreiro da Sé, para uma visita à casa onde teria residido Dom Hugo e ao museu Guerra Junqueiro, situado mesmo ao lado. Mas, porque o grupo a que eu pertencia ainda não estava presente, decidi esperar sentado nos degraus do Pelourinho.
E, porque o granito do degrau estava muito frio, abri um livro que trazia na minha sacola e sentei-me sobre as suas páginas abertas.

Enquanto esperava fui olhando em meu redor e pude ver, para além de inúmeros turistas, situações inesperadas.

----Um rapazote de boné caído sobre os olhos e encavalitado sobre uma bicicleta, fazia as mais espantosas cabriolices à volta de todo o amplo terreiro da Sé.
Ateitei no ciclista e reparei que, de vez em quando, passava tangencialmente por um autimóvel de cor preta e de vidros fumados que estava estacionado junto da casa dos vinte e quatro.
Não pude ver quem se sentava ao volante do espada preto, mas pela nesga da aberta janela do condutor, pareceu-me ver uma figura masculina de chapéu preto, cuja aba lhe escondia parte do rosto.

----Entretanto, uma figura de aspecto feminino, botas pretas de cano alto, casaco comprido de cor preta e barra felpuda a roçar o cano das botas, depois de subir a calçadinha de acesso ao terreiro - mesmo em frente do Café/Bar Calhambeque, aproxima-se dos degraus do pelourinho onde eu estava sentado, quando é interpelada pelo ciclista, que lhe diz de passagem qualquer coisa que não pude ouvir.
A tal figura de aspecto feminino interrompe imediatamente a sua caminhada e, retrocedendo, volta a descer a calçadinha.
Parece-me lógico deduzir que havia uma qualquer relação entre o malabarista ciclista, o espada preto e esta figura de feminino aspecto.
Jamais terei confirmação.

----Quase ao mesmo tempo, dois jovens, um rapaz e uma rapariga, passam por mim vagarosamente. Ele olha para mim e continua o seu caminho. Ela, pouco depois olha também e sorri para mim. Eu, enquanto devolvia o sorriso, pensava: Devem ser turistas...
Decorridos poucos segundos, para meu espanto, vejo sentar-se no degrau, ao meu lado, a sorridente "turista" que me pergunta com a maior naturalidade deste mundo: Você está de visita a este local pela primeira vez? Não precisa de uma guia?
Fiquei esclarecido.

Depois, já com a presença do meu grupo, começava a visita às ruínas da residencia do ilustre Dom Hugo, que terá governado esta cidade do Porto, nos primórdios da sua fundação.
Curiosamente, misturadas com as palavras sábias do nosso guia, ainda ouvia a "turista" perguntar-me: Não precisa de uma guia ?

Duas horas depois e de acordo com a imposição dos meus 87, desci vagarosamente a ladeira, ladeei a Estação de S.Bento e trepei depois até ao Bolhão.
O 55, com destino a Baguim, deixar-me-ia em S. Roque, a dois passos da minha casa.

sábado, 12 de novembro de 2011

Novos pedintes

Obtidas as cópias que fora tirar na Copipress do Via Catarina, saí do edificio descendo aquele pedacinho da rua Fernandes Tomaz até ao Bolhão, onde se situam as paragens de todos os autocarros que se dirigem para Nascente, tais como: Baguim; Ermesinde; Valongo; Gondomar e S. Pedro da Cova.
Estavam vários, parados, a cumprir horários, mas eu decidindo pelo 94, entrei na respectiva fila, onde já estavam cerca de vinte pessoas.
Já na fila, situada imediatamente antes de mim, uma mulher despertou a minha atenção: Vestia normalmente, teria cerca de sessenta anos e, com a boca toda, roía um papo-seco.

Na empedrada calçada, mesmo ao lado da fila, um rapazote de aspecto saudável e de cerca 20 anos. fazia-se acompanhar de um cão que aos meus olhos, era cruzado de Setter.
O rapaz pedia esmola.
Mas não estendia a mão; uma latita pendurada no pescoço do cachorro, era o receptáculo das moedas que lhe quisessem dar.
Reparei nessa altura que o cachorro parecia não estar habituado a cumprir as ordens deste dono, pois não as atendia com a devida ligeireza. Quando o rapazote lhe ordenava "senta" o bicho era muito lento a obedecer o que permitia crer que a ligação domador/cachorro era muito recente.
Tal domador, aliciava o animal atirando-lhe pedacinhos de pão, que o cachorro deveria abocanhar antes que caissem ao chão, o que não acontecia com frequência, o que tornava evidente que o bicho estava ali a fazer um frete, o que me deu o direito de pensar que o rapaz não era dono do bicho há muito tempo.

Então eu, pensando alto e olhando para a mulher situada na fila à minha frente, desabafei:
Vivem-se hoje tempos estranhos...veja-se o processo que este rapaz arranjou para obter uns cobres!...

A velha, olhou para mim de viés, torceu ligeiramente a cabeça na minha direcção e, sem nada dizer, deu mais uma dentada no papo-seco...

O raçado canideo, com a lata já a chocalhar de moedas, continuava a ter de apanhar do empedrado chão, os pedacitos de pão que não conseguira abocanhar no ar....

A doutora Adelaide

No meu matutino e diário passeio, vejo-a na rua com muita frequência.
Vergada ao peso dos seus quase noventa anos, ainda vai saindo de casa para fazer as suas compritas.
Já a conheço há vários anos, desde o tempo em que ela - ainda a tempo inteiro - exercia as funções de directora técnica de uma farmácia lá das minhas redondezas.
É solteira e, pasme-se, sempre viveu só, e ninguém lhe conhece qualquer parente.

Hoje, encontrei-a na loja onde habitualmente compro fruta, ou outras pequenas coisas para consumo imediato.
Quando entrei, estava a doutora Adelaide a mexer em cachos de bananas, ainda contidos na original caixa de grosso cartão prensado, onde ainda se podia ler Produto da Colõmbia.
Tinha nas mãos um cacho com oito ou nove bananas,
Olhou, apalpou, voltou a olhar, para depois dizer tão baixinho que só eu pude ouvir por estar muito próximo dela: São muitas!...
Esgalhou o cacho, ficou com quatro nas mãos e voltou a pôr na caixa as restantes.
De seguida, sem reparar que eu estava antes dela, entrou na fila para pagamento. Entretanto, perguntou à dona da loja: Ò Guidinha, o que me aconselha a fazer para destruir umas papeladas que tenho lá em casa?
A bojuda lojista, super atarefada e sem olhar a doutora, respondeu-lhe: Olhe; queime-os!...
Um outro feeguês, postado na fila e que tinha nas mãos uma embalagem de papel com seis cervejas, meteu~se na conversa para dizer: Mas não faça muito fumo, senão alerta os bombeiros que lo aparecerão para saber qual a origem do fumo!...
Foi quando a lojista retrucou; Queime-os dentro de uma lata!...
O freguês das cervejas parece não ter gostado porque logo retrucou: E queimados dentro da lata já não fazem fumo?
Após uma ligeira pausa, a lojista, que tinha estado de gaveta aberta a fazer uns trocos e sem olhar para ninguém sentenciou: Ou então, rasgue-os.

A doutora Adelaide muito pausadamente mas a tremelicar faz-se ouvir dizendo: Rasgar é que não...é papelada de muita responsabilidade que pode ser apamhada por alguém mal formado que aproveite os nomes e os endereços para fazer qualquer vigarice!... Prefiro queimá-los.
E, voltando-se depois para o homem das cervejas - que me pareceu ser seu vizinho - acrescentou: O senhor não tem lá por sua casa uma lata velha e grande, para eu os queimar?
Este, depois de demorada e silenciosa olhadela para a velha doutora, responde enquanto encolhe os ombros:
Deixe lá doutora, não se preocupe com a papelada...um dia destes eu passo lá por sua casa e levo a lata para os queimar.

A senhora doutora parece ter ficado tão contente com a oferta que até deu um beijinho na face do homem das cervejas

Casa das sandes

Entrei para o 800, provindo de Gondomar,na paragem que se situa a meia dúzia de passos do portão do logradouro que enfrenta o meu prédio de 46 condóminos e, dando uma longitudinal olhadela a todo o miolo do autocarro vislumbrei,bem lá ao fundo,no atrelado,um lugar vago.
Melhor direi se disser que tal lugar estava ocupado pela enorme sacola da passageira que,sentada do lado da janela, fazia uma coisa que pouco se ve já nos dias que
correm: Malha.
Era uma manga daquilo que viria a ser, mais tarde,um pulôver.
Aproximei-me, parei, e apontando o lugar mal ocupado, proferi: Dá licença?
A passageira, sem largar as longas agulhas e o fio de lã de cor acastanhada que segurava entre os dedos, monologou sem sequer me olhar: Estava vago...
Agradeci e sentei-me.
De soslaio,olhei o constante dedilhar e comentei:
Pouca gente, hoje, ainda faz malha!...
Tive resposta imediata quando ouvi: É uma camisola para um dos meus dois rapazes, e eu aproveito este tempo da viagem para a ir fazendo...
Depois,fazendo uma pausa no seu dedilhar, cutucou-me no braço para me dizer:
Também, se não fosse durante as viagens, quando é que eu teria tempo para a fazer?
De seguida, torceu ligeiramente o pescoço na minha direcção, para acrescentar: veja bem; levanto-me ás sete e depois de tomar o pequeno almoço, tenho de adiantar o almoço para os meus rapazes, que o meu Pai - que já está aposentado - acabará quando forem horas.
Quando saio de casa para o emprego, já passa das dez...porque eu entro às onze e meia e só saio do trabalho depois das sete da noite!...
Tá ver...se não fosse agora, quando é que eu tinha tempo para fazer a camisola?
E acrescentou:
Saio no Bonfim, logo a seguir à Igreja,apanho a rua de Pinto Bessa e desço lá ao fundo, em frente da Estação de Campanhã, mesmo ao pé do meu trabalho...é só atravessar a rua.
É na Casa das Sandes; não conhece? Come-se lá muito bem!...Eu não sirvo clientes, estou só na cozinha.
Admirei o seu orgulho quando acrescentou: E não quero lá mais ninguém! Aquela cozinha anda que nem um brinquinho.
Após ligeira pausa acrescentou. O meu ordenado não é por aí além, mas é certinho.

E porque a paragem do Bonfim se proximava foi guardando as suas "coisas" enquanto afável me dizia: Apareça por lá um dia destes...
Olhe: se for; abro uma excepção e vou eu lá servi-lo...

Já no passeio e enquanto o 800 passava por ela, ergueu um braço para me dizer adeus, acompanhado de um rasgado sorriso.