domingo, 13 de novembro de 2011

O Abafador

Ai, credo!...
Que brutalidade!...
Pasmo perante a coragem de certa gente!...

Quem assim exclamou, foi a sensível e meliflua Alice Guerra, que não podia ouvir falar de certas
coisas.
O professor Hugo Veloso, que nos ministrava a matéria designada por Artes e Humanidades, decidira naquele dia falar-nos sobre a obra de Miguel Torga, nomeadamente o conto " O Alma Grande" inserido na 3ª edição do Novos Contos da Montanha.
A história que Torga nos conta com suma mestria, fala-nos de uma terrinha do nosso nordeste transmontano, onde ainda imperava o ancestral hábito de abreviar a vida dos que não tinham salvação possível, chamando o Abvafador, cuja alcunha era a de Alma Grande.
Tratava-se de um individuo bastante alto, mal encarado e de adunco nariz, que morava no cimo de uma ingreme ruela, pela qual sempre soprava um gélido vento galego.

Quase ao mesmo tempo da exclamação da Alice, outros comentários surgiram:
O Tito Rodrigues, com o lirismo que lhe é peculiar, manifestou satisfação pelo facto deste nosso país ter evoluido o suficiente para acabar com a eliminação de actos tão desumanos.
Por sua vez, o professor, de indicador em riste, foi dizendo que a eliminação de pacientes portadores de enfermidades incuráveis, embora com contornos diferentes, ainda hoje era praticada, embora sob a designação de eutanásia.
Neste caso, tal como nos conta Torga, o paciente Isaac ainda não queria morrer.

Fora a mulher do Isaac e mãe do pequeno Abel, quem mandára o rapaz chamar o Abafador, depois do senhor doutor ter sentenciado de que " nada mais posso fazer".
Assim, foi o pequeno Abel que, trepando a ingreme e ventosa ruela, começou a chamar, ainda de muito distante:
Tio Alma Grande!...
Ó Tio Alma grande!...

Pouco depois, o avantajado Abafador, empurrando com um dos pés a porta do quarto onde sofria o doente, entrou.
O Isaac, que ainda ardia com um febrão que já durava há duas semanas, vendo chegar o seu carrasco, agitou-se.
Quis gritar, mas apenas conseguiu emitir um surdo; Não!...ainda não!...
Mas o Abafador tinha uma missão a cumprir.
Trepou para a cama e logo enclavinhou as suas enormes manápolas nas goelas do Isaac, enquanto posicionava convenientemente as suas pernas de modo a que um joelho esmagasse o peito do paciente.

A atenta aluna, Maria de Céu Pinheiro, tensa, gemeu, enquanto exclamava; Que estúpidos costumes!...
Por sua vez, a Nadir Machado apertava entre as nervosas mãos, a sua dor!...
O Porfírio, sensível à narrativa, terrincava os dentes.

Entretanto, o Isaac, com os olhos a saltar-lhe das órbitas, resfolegava: Não...não...ainda não!...
Porém, o Abafador, com a perícia que a sua experiência lhe emprestava, apertava o gasganete do Isaac que, de peito esmagado sob o joelho do carrasco, estava prestes a sucumbir.
Foi então que surgiu o imprevisto.
O miudo, o Abel, movido pela curiosidade, quis ver.
A porta do quarto onde jazia o seu pai, rangendo, abriu.
O carrasco distraiu-se.
Então, o Isaac, momentâneamente liberto da pressão do joelho e das mãos do carrasco, usou a força que o instinto da conservação nos empresta e, dando um safanão, libertou-se.
O carrasco, sentindo o seu prestigio severamente ferido, saltou para o chão do quarto, deu um jeito à pala doseu boné e, sem perder tempo, escapuliu-se.
Por sua vez, o miudo Abel, espantado e tremendo de medo, ficára finalmente a saber qual era o ofício do Tio Alma Grande.

A turma, toda a turma, e creio que também o professor, respiraram fundo.
Mas a história ainda não acaba aqui...
Ora leiam:
O febrão do Isaac acabou por se ir embora e nõ tardou que ele recuperasse o seu forte arcaboiço de lavrador capaz de dominar, sem ajudas, um bezerro pelos cornos.
Ele, sentia gravada bem fundo no seu entendimento a brutalidade animal do Abafador e jurou que se o destino lhe proporcionasse encontrá-lo um dia à mão...ajustariam as contas.
Sem que desse nas vistas, o Isaac foi-o vigiando.
Mas não era fácil...ele tinha hábitos muito precisos e prudentes. Dificeis de prever.

Até que um dia...
O Isaac apanhou-o a jeito e, pelas costas, rasteirou-o.
O avantajado Alma Grande, sem saber ainda muito bem o que lhe estava a acontecer, já sentia no seu cachaço a caloisa tenaz das mãos do Isaac, enquanto as suas costas eram esmagadas pelo possante joelho do Isaac que, animado pelo seu desejo de retaliação e da força que lhe provinha do facto de ser bem mais novo, não cedia um mlimetro sequer.
Antes pelo contrário.
O olhar do Abafador, de espanto, passou a de desespero...enquanto seu peito parecia que ia rebentar, suas forças abandonavam-no, até que cedeu.

Pouco depois, quando o Isaac desmontado da sua já inerte vitima, regressava a casa, sentia desvanecer-se do seu cérebro o rosto do carrasco.
E, com um sorriso a assomar-lhe os lábios, imaginava agora um caçador a ser abatido pelo ricochete do seu próprio disparo....

A turma entreolhou-se, sorriu e voltou a respirar fundo.

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