quarta-feira, 14 de maio de 2008

A Pepsi

Certo dia, o Jorge, o nosso filho mais velho, levou para casa uma cadelinha muito bonita e apenas com alguns dias de vida. A Mãe do Jorge, sobre quem recairiam as futuras tarefas de olhar pela bicha, não concordou muito com a adopção, mas o trio, Jorge+Kekas+Nita,tanta força fizeram que a cadelinha ficou. Ficou e foi muito feliz até um pouco antes de morrer, como veremos adiante. Era "raçada" de Setter com Bulldog, cor acastanhada e riscas transversais mais escuras.
Com o rodar dos tempos, tornou-se o centro das atenções de toda a família e da pequenada lá do sítio.Por proposta do Jorge, que foi aceite unânimemente, passou a chamar-se Pepsi, uma bebida adocicada, acabada de ser lançada no mercado,no fim dos anos cinquenta.
À tal cadela, só lhe faltava falar. Mas ela nem precisava disso...já que ela e a sua dona e tratadora entendiam-se tão bem, que era uma maravilha apreciar.
A casa onde agora a Pepsi morava, situava-se a poucos metros do mar e, talvez por isso, a Pepsi nadava que era um encanto. Nadava tão bem que a pequenada nossa vizinha afastava-se, mar dentro e depois, fingindo afogar-se, gritavam pelo seu nome... e a inocente Pepsi lá ia socorrê-los.
Os marotos agarravam-se-lhe ao rabo e vinham de boleia até à praia.
É claro que a malta tantas fez, que a Pepsi passou a ignorar os pedidos de socorro, deixando- se ficar magestáticamente sentada na praia...a olhar o mar.

Foram inúmeras as cenas de que fui protagonista, eivadas de defeitos e virtudes, mas, cá para mim, e porque se tratava de um canino, ela tinha mais virtudes que defeitos.
Era glutona, mas portava-se à "sua" mesa, com muita dignidade.
Como todos os da sua raça, gostava muito de carne mas, antes que a pudesse comer era preciso dar-lhe expressa autorização e, enquanto tal ordem lhe não fosse dada, sentava-se sobre os quartos trazeiros e, de olhar fixo no prato da carne, desfazia-se em baba...metia dó.
É claro que jamais a desiludimos; depois de cada suplicio, ganhava invariávelmente o seu quinhão.
Em certos "períodos" tinhamos mais cuidados com ela, pois não queriamos que tivesse filhos, mas, um dia, enquanto o seu guardião e dono, desatento, lia um livro à sombra de uma das duas belas mangueiras que adornadavam o nosso quintal, um belo e grande cão "parece-me que o dos nossos vizinhos Hortas" cobriu-a.
Toda a gente acompanhou a sua gravidez e o parto.
Depois, quando a ninhada nasceu, cometemos a barbaridade que a tradição recomendava, eliminando parte da ninhada.
A Pepsi, impotente, assistiu à eliminação, mas acho que é bom que todos saibam que a pessoa que executou tal tarefa nunca mais pôde entrar no nosso quintal sem ser agredida pela Pepsi.

Tal quintal, muito agradável de desfrutar, tinha uma caracteristica negativa...estava à mercê de lacraus vindos das travessas de madeira existentes sob os carris da via férrea proxima.
Um dia, a sua dona, perseguiu um deles com uma vassoura, mas não conseguiu matá-lo e o bicho desapareceu. A Pepsi, como era seu timbre, acompanhou com todo o interesse esta cena.
Mais tarde, já depois de recolhidos, ouvimos a Pepsi ganir estridentemente.
Céleres, ainda pudemos ver a escapulir-se, um enorme e negro lacrau. A Pepsi, deitava sobre o cimento, gania e espumava abundantemente.

Era evidente que o lacrau a tinha picado.
Imediatamente solicitamos os favores do nosso amigo e enfermeiro Armindo, que agiu de imediato. Depois da inoculação de um anti-veneno e de um sedativo, a Pepsi ficou alimentada a soro...portando-se com todo o brio.
Mimada, olhava-nos como se nos pedisse compaixão pela sua dor...
Depois, durante a convalescença e porque passava a maior parte do tempo deitada, passamos a dar-lhe de beber a água através de uma chávena...ela, mantendo-se deitada punha a lingua de lado para a sorver.
Mais tarde, já completamente recuperada, a Pepsi apenas bebia àgua pela "sua"chávena.

Entretanto; os tempos mudaram.
Surgiram os inevitáveis ventos da libertação que arruinaram o respeito, a disciplina e a ordem.
A Pepsi, que cumprira com todo o empenho a sua missão, apareceu, certa manhã, morta.
Alguém, durante a noite, a envenenara.

Não sei para onde irá a "alma" dos cães, mas eu gostaria que ela soubesse que ainda hoje, decorridos que são quarenta anos depois da sua morte, ainda a recordamos com a gratidão que ela sempre fez por merecer.

Porto, 06.06.06

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1 comentário:

Trol Leifsson disse...

A inefável Pepsi, que também faz parte do meu imaginário, mesmo sem nunca a ter conhecido. Tamanha virtude canina, em tão boa prosa cantada e em muitas conversas citada, jamais será olvidada. Muito bem, avô!